Janeiro Seco

Especialistas debatem origem do ‘sober shaming’, prática que constrange os abstêmios

No verão, quando aquele brinde pós-praia é corriqueiro e os drinques em noites quentes, praticamente obrigatórios, quem decide dizer não ao álcool enfrenta olhares de estranhamento

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Quando se propôs a ficar 90 dias sem beber álcool, em uma espécie de detox aliado à reeducação alimentar, o advogado carioca Guilherme Cintra, de 49 anos, não imaginava ser o assunto em reuniões sociais. Durante a festa de uma amiga, ouviu insistentes piadas. “Na minha casa, ninguém fica sem beber.” Diante do constrangimento, acabou cedendo à pressão. “É complicado porque você quer ficar na sua, mas vira o foco. E parece que os outros têm a necessidade de reforçar e apontar quem não bebe. É muito chato”, reclama.

O álcool nunca foi um problema grave na vida do advogado, mas a sobriedade, nesses três meses, trouxe melhores percepções sobre si. “São dias felizes sem ressaca, com o raciocínio mais rápido. Também me sentia mais disposto para treinar”, relata. “Aos poucos, me dei conta de que não gostava tanto assim de beber e reavaliei: ‘Qual a necessidade de inserir o álcool em tudo?’. Ele não é tão essencial quanto pensamos.”

A situação vivida por Guilherme tem nome: sober shaming (vergonha da sobriedade, em tradução livre), prática que constrange quem escolhe não consumir bebidas alcoólicas. A pessoa se torna o peixe fora d’água em qualquer situação que envolva uma roda de amigos e uma mesa de bar ou um restaurante.

Apesar da campanha internacional chamada “Janeiro Seco”, que estimula a passar o primeiro mês do ano sem ingerir uma gota de álcool, no verão, o brinde pós-praia é corriqueiro e os drinques em noites quentes, praticamente obrigatórios. Por isso, quem decide dizer não ao álcool enfrenta, no mínimo, olhares de estranhamento. “As bebidas alcoólicas, há milênios, na perspectiva eurocêntrica, estão associadas a celebrações com conotação de intoxicação. Era algo ritualizado e em grupo”, explica o psicanalista e professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, Wilson Franco. “Depois, nos EUA do período entre guerras, de 1919 a 1933, tornou-se proibido consumir álcool. Foi uma vitória do conservadorismo, e aqueles que iam contra essa regra, eram vistos como transgressores”, continua.

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Nas décadas seguintes, com a ajuda da indústria do entretenimento, beber, assim como fumar cigarro, conquistou um status “cool”. “Isso ganha força com a contracultura dos anos 1960 e 1970, contribuindo para a construção da imagem do consumo de álcool e outras substâncias como símbolo de liberdade, prazer e rebeldia”, acrescenta a socióloga Mariana Thibes, do Cisa (Centro de Informações sobre Saúde e Álcool). Para a especialista, os homens são mais suscetíveis ao consumo, uma vez que a substância está associada a ideais de virilidade. Mas, diz a especialista, qualquer um que rechace um copinho pode sentir a pressão. “Isso vem por meio de brincadeiras, insistências e até mesmo exclusão social.”

Já as “vítimas” do sober shaming não têm sexo, idade ou perfil definidos. A criadora de conteúdo Dani Rudz, de 49 anos, já foi acusada de ser infeliz e má companhia por se negar a beber. “É desagradável. Mas tenho as desculpas certas para não insistirem: digo que tomo remédios que não podem se misturar ao álcool.” Em eventos onde há oferta de drinques, vinhos e espumantes, Dani relata a sensação de estar cometendo um “crime” ao negá-los. “Isso me afasta de certos lugares. Só vou a comemorações muito específicas”, pontua.

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A Geração Z, nascida entre 1997 e 2012, vem repensando a relação com o álcool. Segundo dados do Relatório Covitel de 2023, o número de brasileiros entre 18 e 24 anos que consomem álcool três ou mais vezes por semana caiu de 10,7%, antes da pandemia, para 8,1%, no ano passado. “Há uma maior preocupação com a saúde e a estética, e mais resistência à pressão social”, reforça Mariana. Se quiser aproveitar a ressaca das festas de fim de ano para fazer um detox em janeiro e além, seja firme na resposta a qualquer constrangimento ou piada. “Ninguém deve se sentir culpado por não beber. Recuse de forma objetiva, sem dar muitas justificativas, pois elas abrem margem a mais insistência. Esteja seguro das suas escolhas”, aconselha o psiquiatra do Cisa, Arthur Guerra.

O importante é celebrar a vida com liberdade.
Por O Globo

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