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Autismo não é doença, mas há quem prometa ‘cura’; veja riscos de soluções falsas

Segundo especialistas, danos são de ordem financeira, emocional e física — e podem levar à morte
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O autismo não é uma doença. Portanto, não tem cura. O que se trata, na maioria das vezes, são as comorbidades — cerca de 70% das pessoas com o transtorno do espectro autista (TEA) apresentam outros distúrbios associados.

Ainda assim, falsas promessas de cura para a condição são facilmente encontradas nas redes sociais e causam estragos na saúde física, mental e emocional de pessoas com TEA e suas famílias. São tantos danos que a neuropsicopedagoga clínica Ângela Cristina Munhoz Maluf prefere dividir em três categorias: físicos, financeiros e emocionais.

No primeiro grupo, a autora do livro Autista… E Agora? (Editora Vozes, 2023) inclui a exposição de crianças e jovens a tratamentos com substâncias tóxicas ou terapias agressivas sem comprovação científica. No segundo, famílias de pessoas com TEA podem investir suas economias em pseudotratamentos caros, impróprios e sem resultado. No terceiro e último, pessoas inescrupulosas se aproveitam da vulnerabilidade emocional dessas famílias para prometer resultados inalcançáveis. Quando isso acontece, pais e mães se sentem culpados por terem acreditado na cura do autismo.

“Nenhum desses tratamentos tem respaldo científico em estudos sérios que comprovem eficácia ou segurança. Pior: podem causar efeitos colaterais graves, desde intoxicações até a morte”, alerta Ângela.

Desses pseudotratamentos, Ângela aponta a ozonioterapia como a mais utilizada. Em agosto de 2023, foi aprovada uma lei que permite o uso da ozonioterapia em todo o território nacional, sob determinadas condições e como tratamento complementar. Acontece que, ainda hoje, pairam dúvidas e polêmicas sobre seus benefícios à saúde.

“Se a técnica for administrada de forma inadequada e por profissionais sem experiência, pode causar lesões na pele, problemas respiratórios e até a morte por inalação de ozônio”, acrescenta.

Se a ozonioterapia é o tratamento mais comum, o dióxido de cloro é um dos mais graves. Quem garante é Ana Carolina Coan, professora do Departamento de Neurologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e integrante da Academia Brasileira de Neurologia (ABN).

“Embora todos sejam eticamente condenáveis e perigosos, o uso do dióxido de cloro já levou à hospitalização em diversos países, incluindo alertas oficiais de agências reguladoras como FDA (EUA) e Anvisa (Brasil)”, esclarece a médica. “O dióxido de cloro é um agente tóxico semelhante à água sanitária que pode causar lesões no trato gastrointestinal, insuficiência hepática e renal e até a morte.”

Tempo perdido

Para Ana Carolina, tão grave quanto o estrago físico, mental e emocional é o tempo que se perde com essas falsas promessas de cura.

“Ao investir recursos, energia e expectativas em intervenções ineficazes, as famílias, muitas vezes, deixam de oferecer à criança o acesso a terapias com eficácia comprovada, como o acompanhamento multiprofissional, terapias comportamentais baseadas em evidências, como o ABA adaptado, estimulação precoce e apoio educacional especializado”, lista a neurologista.

ABA é a sigla em inglês para Applied Behavior Analysis, que pode ser traduzida como Análise Aplicada do Comportamento. É uma terapia indicada para desenvolver as habilidades sociais e de comunicação das crianças com TEA.

“Em um momento crucial do neurodesenvolvimento, qualquer atraso pode comprometer ganhos importantes na comunicação, sociabilidade e autonomia”, afirma Ana Carolina.

Mas as falsas curas e os tratamentos enganosos não se resumem à ozonioterapia e ao dióxido de cloro. Abrangem a prata coloidal, o azul de metileno, a terapia de eletrochoque de Tesla e a suramina.

A prata coloidal, por exemplo, tem propriedades antimicrobianas, mas sua segurança e sua eficácia para uso interno não foram devidamente comprovadas. “Pode levar à argiria, condição irreversível que deixa a pele azulada. Isso sem falar que afeta rins, fígado e o sistema nervoso”, pondera Ângela.

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O azul de metileno foi desenvolvido como corante para tecidos. Descobriu-se, com o passar dos anos, que ajuda a identificar bactérias e parasitas. As reações mais comuns são tontura, cefaleia, sudorese e dor nos membros. “Não há estudos que avaliem seu uso em pessoas com TEA”, observa Ângela.

Já a terapia de eletrochoque de Tesla, mais conhecida como eletroconvulsoterapia (ECT), consiste em provocar uma crise convulsiva, a partir de uma corrente elétrica, com o objetivo de causar alterações no comportamento e atenuar sintomas psiquiátricos. “Carece de qualquer respaldo e pode levar a complicações”, adverte Ana Carolina.

A suramina, por sua vez, é um medicamento antiparasitário sem aprovação para uso clínico em pacientes com TEA que pode causar alterações no sangue e no fígado.

“Não consigo dizer qual deles é o mais ou menos perigoso. Todos compartilham de um princípio comum: a ausência de evidências científicas aliada a riscos concretos para a saúde”, afirma a psicóloga e neuropsicóloga Andréa Lorena Stravogiannis, autora de Autismo: Uma Maneira Diferente de Ser (Literare, 2023). “Todos promovem a falsa noção de que o autismo é uma doença a ser curada. Trata-se, na verdade, de um transtorno do neurodesenvolvimento que demanda compreensão, suporte e respeito.”

Negócio lucrativo

A proliferação de falsas curas e tratamentos enganosos é reflexo da desinformação relacionada ao TEA. Uma pesquisa realizada entre a Fundação Getúlio Vargas (FGV) e a Associação Autistas Brasil revelou que, em cinco anos, essa desinformação registrou um aumento de mais de 150 vezes no Telegram.

A que os especialistas atribuem isso? “Tem múltiplas causas”, afirma Andréa. “Em primeiro lugar, o crescimento das redes e dos aplicativos de mensagens facilitou a rápida disseminação de conteúdos sensacionalistas sem comprovação científica. Em segundo, ainda existe pouco acesso à informação de qualidade e em linguagem acessível. Isso cria um território fértil para teorias conspiratórias e curas milagrosas. Por último, há um fator emocional: o desespero que muitos pais sentem ao receber o diagnóstico leva-os a buscar soluções rápidas.”

Tanto pais quanto filhos perdem com a desinformação. Então quem ganha? Quem responde é Noemi Takeuchi, coordenadora do Autismo e Realidade, projeto que visa difundir conhecimento sobre o TEA e combater preconceitos.

“Algumas dessas propostas são comercializadas e geram rendimentos para quem as fornece às famílias, sejam vendedores ou profissionais inescrupulosos. Outra forma de lucrar com a disseminação desses falsos tratamentos tem sido através das redes sociais. A viralização de conteúdos que prometem resultados milagrosos pode gerar rendimentos aos donos de perfis ou influenciadores digitais com a monetização dos canais, seja pelo engajamento dos seguidores, seja pela atração dos anunciantes. Infelizmente, a desinformação relacionada ao autismo se transformou em um negócio lucrativo”, lamenta Noemi.

O aumento das fake news, explica Helena Brentani, coordenadora do Programa de Transtornos do Espectro Autista (Protea), do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP), é diretamente proporcional ao aumento no número de diagnósticos. Atualmente, estima-se que uma em cada 31 crianças de oito anos nos EUA esteja no espectro. Em 2000, a estimativa era de uma em 150.

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“Apesar de todos os esforços tanto dos médicos quanto de outros profissionais da área da saúde, a desinformação ainda é grande e acaba tendo um impacto nocivo nos pais que podem estar mais vulneráveis pelo diagnóstico dos filhos. Se, de um lado, há a vulnerabilidade emocional dos pais, do outro há o oportunismo financeiro de quem promove curas milagrosas.”

Doença ou condição?

O psiquiatra e psicoterapeuta Alexandre Valverde conhece a vulnerabilidade emocional dos pais de crianças e jovens diagnosticados com TEA. Muitos deles, relata o médico, ficam aflitos ou entram em desespero ao receber o diagnóstico porque associam o autismo à deficiência intelectual. E, desesperados, apelam para todo e qualquer tipo de promessa enganosa.

Por essa razão, Valverde toma alguns cuidados. O principal é chamar o autismo de condição, e não de transtorno ou doença. “Se o autismo é uma doença, os pais pressupõem que pode ser curada. Não é o caso”, explica o médico, ele próprio diagnosticado com TEA aos 42 anos. “O autismo não é uma doença, é uma condição de origem genética. O que há para tratar são as comorbidades, como ansiedade e depressão, entre outros distúrbios”, reforça.

Se o diagnóstico de Valverde foi tardio, o de Renato foi precoce. Ele tinha pouco mais de 2 anos quando, em 1980, sua mãe, Marisa, resolveu levá-lo a uma psicóloga. O garoto que gostava de cantarolar músicas do cantor Roberto Carlos, de repente, começou a dar cabeçadas no chão e na parede. Logo na primeira consulta, Marisa ouviu da psicóloga que seu filho tinha autismo. Até então, nunca tinha ouvido falar naquela palavra. O diagnóstico foi confirmado por dois neurologistas.

“Jamais submeteria um filho a um tratamento sem comprovação científica”, afirma Marisa Furia Silva, uma das fundadoras da Associação de Amigos do Autista (AMA). Hoje, Renato tem 48 anos. É um dos 2,4 milhões de brasileiros que, segundo o Censo, têm diagnóstico de TEA no País.

O filho de Marcelo Vindicatto também foi diagnosticado na infância, no início dos anos 2000. “O autismo não estava tão em voga e havia muita desinformação”, recorda o pai. “Cheguei a crer, por pouquíssimo tempo, que as vacinas seriam causadoras do autismo. Cheguei a pesquisar a quelação, suposto tratamento milagroso da época, mas não fui em frente conforme aprendi que o autismo não tinha cura.”

Cidadania, não cura

Henrique Vitorino, autor do Manual do Infinito: Relatos de um Autista Adulto(Nova Alexandria, 2023), pondera que famílias de autistas que sofrem com as realidades diárias do espectro e não têm recursos para realizar um tratamento adequado buscam esses “tratamentos milagrosos” como última alternativa.

“Se existe um movimento forte do mercado do autismo em monetizar a causa, não vejo o mesmo interesse da sociedade em implementar a inclusão”, critica, mencionando o descumprimento das leis que garantem os direitos das pessoas com TEA. “A falta de adaptação profissional para autistas em todos os níveis de suporte é algo alarmante, mas que não chama a atenção da opinião pública”, acrescenta.

“Longe de buscar uma ‘cura’ para nossa condição, desejo que a sociedade reflita e se esforce para dar aos autistas o lugar de cidadania que temos por direito.”

Por Estadão | André Bernardo

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